A nova casta dos "portugueses" de GoaA nova casta dos "portugueses" de Goa
Texto editado em 1999, no suplemento Pública do jornal Público, mas para recordar:
Integração do Estado Português da Índia na União Indiana foi há 38 anos
Textos Rui BaptistaDe nada valeu o esforço dos fiéis que, naquela tarde de 16 de Dezembro de 1961, realizaram uma procissão a pé, de Pangim ao túmulo de São Francisco Xavier, em Velha Goa, para rogar ao santo que impedisse a iminente invasão do Estado Português de Índia (EPI) pela União Indiana. São Francisco fez ouvidos moucos às preces dos brâmanes católicos que dominavam a vida económica e política de Goa no tempo do colonialismo português, e dois dias depois do procissão religiosa as tropas indianas entraram triunfalmente no território. Findava aí, de maneira dolorosa para o orgulho nacional, o domínio português em Goa, Damão e Diu. E começava a derrocada imparável do império colonial português, cujo último acto se escreve amanhã com a devolução de Macau à China. Trinta e oito anos depois da invasão indiana - que para parte significativa do população representou a libertação do jugo colonial - o PÚBLICO foi a Goa ver o que resta da herança portuguesa.
Naquela madrugada de 18 de Dezembro de 1961, dia em que completou 18 anos, Manuela Barreto Xavier adormeceu portuguesa e acordou indiana. Mas permaneceu goesa, brâmane e católica, três qualidades que a colocam no cada vez mais reduzido grupo de pessoas que, em Goa e em muitos outros lugares do mundo, se sentem indianas por fora e portuguesas por dentro. Pessoas como o magistrado Eurico Santana da Silva, juiz do Supremo Tribunal de Bombaim e guardião de uma das mais monumentais casas indo-portuguesas do território; ou como Fernando Jorge Colaço, advogado com escritório em Pangim e estudioso incansável das leis e costumes portugueses. Ou ainda como Rosa Rodrigues, da aldeia de Cunchilim, cuja maior ambição na vida é viajar até Portugal para rezar em português no santuário de Fátima. São pessoas como eles que, 38 anos após a integração forçada do Estado Português da Índia (EPI) na União Indiana, mantêm viva a herança portuguesa em Goa, alimentada por um discurso de nostalgia por um passado que não volta. Encarados muitas vezes como um anacronismo, os "portugueses" de Goa estão a caminho de se transformar em mais uma casta no país das castas. A casta dos que, como refere Santana da Silva, "têm passaporte indiano e coração português".
Para encontrar uma explicação para tanto apego à cultura e à língua portuguesas, é preciso recuar no tempo. Recuar pelo menos até 1632, ano em que o Papa Gregório XV decretou que os brâmanes indianos que aceitassem converter-se ao catolicismo mantinham os privilégios da sua casta, podendo continuar a exibir publicamente os respectivos sinais distintivos. Esta decisão veio de encontro aos interesses dos portugueses, que desde a chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498, baseavam a sua autoridade na conversão de brâmanes e chardós (as duas castas superiores hindus), a quem era garantido o acesso a todos os cargos da administração local.
Alguns dos recém-convertidos mantiveram em segredo as práticas rituais da sua religião ancestral, como depois foi comprovado pelos desvarios da Inquisição. Mas muitos converteram-se definitivamente ao cristianismo, mantendo-se embora divididos em quatro castas. Os brâmanes ocuparam as mais altas posições no clero, nas profissões liberais e na administração. Os chardós, por seu turno, formaram uma aristocracia rural que acabou recompensada pelos portugueses com títulos de nobreza, enquanto os sudras e corumbins são, ainda hoje, maioritariamente camponeses e trabalhadores braçais.
Eram precisamente os brâmanes e os chardós católicos que dirigiam na prática o Estado Português da Índia (EPI) quando a União Indiana (UI) reclamou, pela voz do primeiro-ministro Nehru, a devolução de Goa, Damão e Diu. O Governo de António Salazar recusou estas pretensões e lançou-se numa batalha diplomática, tendo mesmo recorrido para o Tribunal de Justiça de Haia quando a UI anexou os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli. Enquanto Salazar hesitava sobre se devia invocar a aliança com a Inglaterra, as tropas indianas avançaram sobre Goa, Damão e Diu na madrugada de 18 de Dezembro de 1961, tendo encontrado fraca resistência. No território estavam aquartelados apenas cerca de 3500 soldados portugueses, naturalmente impotentes para resistir a um assalto de mais de 30 mil indianos. O velho cruzador Afonso de Albuquerque ainda resistiu à entrada do Porto de Vasco da Gama, mas acabou por afundar-se junto à praia de Dona Paula. O governador-geral do EPI, general Vassalo e Silva rendeu-se a 19 de Dezembro, reconhecendo que a defesa do território era "insustentável". Oliveira Salazar nunca lhe perdoaria esta atitude, demitindo-o do exército dois anos depois.
Começou então um período muito difícil para os brâmanes católicos e para os chardós. Perdem privilégios e terras. Quintas e várzeas de arroz que faziam a riqueza das casas senhoriais são divididas e entregues aos camponeses. "Vim a correr de Bangalore para garantir que a casa se mantinha na posse da família", recorda num português fluente a herdeira da família Menezes Bragança, proprietária de uma magnífica casa em Chandor (Salcete). Conhecida como "dama de Chandor" e descrita pelo escritor José Eduardo Agualusa como "a guardiã da memória de Goa", Aida Bragança viu-se obrigada a abrir a casa a visitas de turistas para preservar o espólio da família, que inclui preciosas peças de arte-sacra, porcelanas da China e da Companhia das Índias e mobiliário indo-português em madeiras nobres e marfim.
Também os membros da administração local enfrentam problemas. Aos magistrados, por exemplo, é dado um prazo de 24 horas para decidirem se continuam ao serviço da UI ou se abandonam os cargos. Muitos dos que escolhem ficar atravessam a seguir um período muito difícil, como o juiz Santana da Silva, que esteve mais de 20 anos sem uma promoção. A maioria dos brâmanes católicos são substituídos nos cargos de decisão por hindus. A língua portuguesa desaparece dos currículos escolares. A relação de forças altera-se no novo Estado de Goa, e os cristãos, passam a estar em minoria. Os falantes de português sentem-se ostracizados e muitos optam por emigrar.
Só em 1985, por acção de um dos Governos presididos por Mário Soares, as relações entre Portugal e a UI entram num clima de razoável normalidade. É aberto primeiro um consulado português em Pangim, depois a Fundação Oriente instala-se numa magnífica casa branca no bairro das Fontainhas. Na Universidade de Goa começa a funcionar uma licenciatura em Língua Portuguesa e o Português regressa aos currículos do ensino secundário. O jovem Fausto Colaço é um bom exemplo dos novos tempos. Foi dos primeiros a completar o curso na Universidade de Goa e hoje ensina Português em diversas escolas em redor de Margão. "Há um grande interesse pela língua portuguesa, em especial por parte de alunos que sonham em fazer carreira fora de Goa", reconhece.
Durante os anos em que Portugal e a Índia estiveram de costas voltadas, quem manteve viva a cultura e a língua portuguesas foram os brâmanes e os padres católicos. "Dentro de casa, no seio da família, falamos português; cá fora falamos inglês, konkani, hindi ou o que for preciso", explica Fernando Jorge Colaço. Advogado da Fundação do Oriente, este goês formado em Lisboa prepara-se para publicar em português um livro contando a sua versão dos acontecimento de 18 de Dezembro de 1961. O advogado é apenas mais um da extensa lista de goeses que continuam a escrever e a publicar em português, onde se destacam os nomes dos escritores Carmo Azevedo e Carmo Noronha (recentemente falecido).
O Português permaneceu também vivo nos registos notariais e até nas leis que regem as questões de família e sucessões. O velho código de Seabra ainda está parcialmente em vigor para os nascidos no território. Padres como Avinash Rebello, da paróquia de Santa Cruz, continuam a ser os guardiões dos registos de nascimento e morte, e no seminário grande de Rachol continua a língua portuguesa voltou a ser ensinada. Em Pangim, todos os domingos, a missa é celebrada em português, para grande alegria de pessoas como Florêncio Ribeiro, alfaiate que há 40 anos cruza as estradas de Goa montado na sua bicicleta para costurar vestidos ocidentais nas casas indo-portuguesas. "Nasci português e vou morrer português. É o meu karma", diz. E sorri sem mostrar os dentes.
"O português está 'in'"
Kamalacant será um nome tão português quanto Santos, Silva ou Rodrigues?À primeira vista parece que não. Mas o senhor Kamalacant, Menino de nome próprio, jura que sim. "É um nome português e cristão sim senhor. Foi-me dado pelo meu pai, que também era um português puro", garante na língua de Camões, enquanto vai afinando o motor de uma motorizada Bajaj, na sua oficina no bairro das Fontainhas, em Pangim. Ali, a dois passos da casa branca da Fundação do Oriente, toda a gente reclama as suas raízes portuguesas. Falar português ou apenas ter um apelido vagamente lusitano é um sinal reconhecido de "status".
Mas não é só no labirinto das ruas das Fontainhas que, como refere o advogado Fernando Colaço, "o português está 'in"'. No exclusivo Hotel Forte Aguada, por exemplo, as refeições dos hóspedes são acompanhadas pela toada dolente de um fado cantado com um sotaque arrevezado. Ouvir cantar "Coimbra menina e moça" enquanto se come um caldo que é verde mas não é Caldo Verde é, no mínimo, surpreendente.
Quem anda por Goa acaba sempre por tropeçar em alguma coisa que lhe traz Portugal à memória. Seja as velhas tabuletas em português, a traça inconfundível das casas indo-portuguesas ou uma oração murmurada numa das centenas de igrejas e capelas brancas espalhadas pelo território. Ao final do dia dança-se um vira estilizado no convés dos barcos turísticos que cruzam o rio Mandovi. E pelas janelas abertas das casas de Margão, Mapusa ou Pangim chegam até à rua os sons da RTP Internacional, a nova "coqueluche" da televisão por cabo em Goa. Marques Mendes, Jorge Coelho ou Carlos Carvalhas nem suspeitam do sucesso extraordinário que os seus bonecos no Contra-Informação fazem entre os espectadores de Goa. E Nicolau Breyner pode dormir descansado, porque a telenovela A Lenda da Garça é um sucesso no antigo Estado Português da Índia, apesar de passar a um horário tardio.
Outro sinal de orgulho na herança portuguesa é a recuperação das espantosas casas indo-portuguesas espalhadas por todas as aldeias goesas. A Fundação do Oriente deu o exemplo ao subsidiar a recuperação de algumas casas nas Fontainhas, mas o principal trabalho está a ser feito por particulares como Aida Bragança ou Santana da Silva, que têm gasto fortunas para manterem de pé os palacetes de Chandor e Margão. Os novos-ricos de Goa, com os bolsos cheios de petrodólares ganhos no Golfo Pérsico, têm vindo a adquirir casas por todo o lado, como a casa grande cristã de Loutolim, que hoje apresenta a fachada recuperada.
A elite dos brâmanes católicos continua em progressiva perda de influência. Quem manda hoje em Goa é uma burguesia hindu ligada às minas de carvão e outros hindus de casta mais baixa que fizeram fortuna no Golfo e hoje mandam os filhos estudar para Bombaim, e até para a América e para a Europa. São quase todos oriundos de outras partes da Índia e continuam a chegar a Goa diariamente, trazidos pelos novos comboios da Konkani Railway. Os menos afortunados instalam-se em gigantescos acampamentos em redor das principais cidades e ganham a vida como trabalhadores braçais ou vendendo bugigangas aos turistas nas praias.
No aeroporto de Dabolim aterram todas as semanas dúzias de aviões "charter", trazendo turistas europeus, atraídos pelo sol das praias brancas de Goa. São quase todos ou muito jovens ou muito velhos. Os primeiros instalam-se nas "shacks" (pequenos hotéis e restaurantes à beira das praias) e cumprem o circuito das "rave parties" movidas a marijuana e música "techno". Os segundos refugiam-se nos hotéis de luxo, e só põem o nariz de fora para comprar algumas obras de artesanato nas lojas das redondezas a preços exorbitantes. O turismo continua a ser a galinha de ovos de ouro de Goa, e todos os dias surgem notícias sobre a construção de novos hotéis.
No meio de tudo isto, os brâmanes católicos agarram-se ao passado. Exaltam as suas raízes portuguesas, refugiam-se no catolicismo e vão fazendo o que podem para manter de pé as casas apalaçadas, com a ajuda do dinheiro enviado pelos parente que emigraram para Portugal. O seu tempo passou. Mas eles permanecem agarrados a costumes antigos, à espera de uma redenção que poderá nunca chegar.
Cristãos e Freedom Fighters
Os mendigos foram os primeiros a chegar. Alguns foram trazidos em braços até aos degraus da igreja matriz de Margão, outros vieram pelos seus próprios meios, deslizando em tábuas de madeira assentes em rolamentos ou precariamente equilibrados em muletas improvisadas com ramos de árvores. Depois chegaram os vendedores. Mais perto da igreja ficaram as bancas dos doceiros hindus, muito apreciados pelo paladar cristão, e logo a seguir instalaram-se os trens de cozinha de inox e latão, as panelas de barro e os brinquedos de plástico. Mais para o fundo, numa zona descampada, amontoaram-se os vendedores de mobílias, e um jovem amestrador de cobras conseguiu até encaixar-se num cantinho, entre uma cama de madeira trabalhada e um guarda-fatos cujo espelho reflectia as contorções dos répteis. Com quase um dia de antecedência, os comerciantes hindus montaram a sua feira à volta da igreja onde iriam decorrer as celebrações católicas da Nossa Senhora da Conceição. E sem darem qualquer sinal de impaciência por ali passaram a noite à espera dos devotos cristãos, que chegaram em hordas na manhã seguinte.
Ser católico em Goa implica militância. Implica uma devoção e entrega que dificilmente tem paralelo no Ocidente. A concorrência entre religiões é muita, e os cristãos estão hoje espartilhados pelo hinduísmo dominante e pelo islamismo crescente. A cultura goesa pode ser sincrética e dinâmica, mas é com temor que muitos cristãos assistem ao nascimento de templos hindus e mesquitas muçulmanas ao lado das velhas igrejas e capelas deixadas pelos portugueses. Ao contrário do que sucedia antes da integração na União Indiana, hoje os hindus representam mais de 60 por cento da população, contra cerca de 30 por cento de católicos. As vagas de imigrantes de outros pontos da Índia transformaram o tecido social de Goa e ameaçam a identidade dos cristãos.
Neste contexto, todas as celebrações religiosas são encarados como momentos de afirmação de uma cultura e de um modo de vida. Às festas da Senhora da Conceição em Margão, por exemplo, acorreram fiéis vindo de toda a Goa, numa manifestação de força e de fé. Na manhã do dia oito de Dezembro as missas sucederam-se ininterruptamente desde as seis da manhã, celebradas alternadamente em inglês e konkani. Na igreja matiz de Pangim o Pai Nosso foi rezado em português.
Os brâmanes católicos, no entanto, não parecem ter vocação evangélica. O programa dos festejos nocturnos, por exemplo, é feito à medida para afastar hindus e outras crenças. A música é uma mistura de xaroposas canções de amor ocidentais e modinhas portuguesas, e à porta do recinto fechado e com entrada reservada, cartazes avisam de que será servida unicamente comida não-vegetariana.
Esta atitude ajuda a confinar ainda mais os brâmanes católicos num gueto, e alimenta as críticas dos chamados "Freedom Fighters", organização cujos membros recebem do Governo indiano uma pensão de cerca de 2.500 escudos por terem combatido o colonialismo português. Os Freedom Fighters são também um anacronismo, mas ninguém os pode acusar de falta de actividade.
Foi em grande parte devido aos seus protestos públicos que redundaram num falhanço em Goa as comemorações da chegada de Vasco da Gama à Índia. São eles também que regularmente escrevem nos jornais exigindo que os nomes portugueses das cidades sejam substituídos por designações em Konkani. Foram eles, por último, que denunciaram as alegadas pretensões neo-colonialistas dos portugueses no momento da abertura do consulado em Pangim, ao mesmo tempo que punham a correr o rumor de que a Fundação Oriente era um ninho de espiões. Embora a maioria dos Freedom Fighters seja afecta ao Partido do Congresso, muitos transferiram-se nos últimos anos para Barathia Janata Party (BJP), o partido nacionalista hindu moderado que hoje detém o poder na Índia. Trinta e oito anos depois da integração do Estado Português da Índia na União Indiana, a luta continua para brâmanes católicos e Freedom Fighters. Tolhida por artroses e ligeiramente esclerosada, mas continua.