Eu conheci o «Toyota».Cresceu comigo, eu na casa de sonhos do Toyota, com um pinheiro, relva, pais e avós e ele algures no pinhal do Fim do Mundo, irmão de um bandido com os pais ninguém sabe onde.Na altura não era «Toyota» era o Toninho.
Era cigano? Dizem que não, embora esse não só mais tarde tenha vingado. Aos 10, 11 e doze anos ele era cigano. Roubou-nos uma vez a bicicleta. Andámos à porrada noutra vez.. Aparecia em nossa casa a pedir, fazia da nossa casa passagem
-Vai de roda – gritou-lhe uma vez a minha mãe
-Vai de roda, vai de roda- cantava ele rodopiando. Tinha humor e era uma das grandes personagens de S João do Estoril
Tínhamos a mesma idade. Eu tinha um disco do Joe Jackson e sempre gostei de OVNIS. Ele não tinha nada, vagueava sózinho, tentando meter medo para se impor.
Não era aceite, era cigano e ladrão. Encontrei-o uma vez com um saco de plástico na cabeça a «snifar» cola.
-Tás bom Chico ?- cumprimentou-me ele tirado a cabeça do saco com uma voz enrolada. Nunca mais o vi. Noticias dele deu-mas o meu Pai. Tinha mudado de nome era o Toyota. Servia os presos de tudo. Só se levantava da cama depois de levar pancada:
O que é que lhe terá acontecido?
O Sexo dos Anjos fez-me chegar esta prosa do meu Pai:
O “Toyota”, o menino Rui e o Palma Inácio Os leitores não conhecem o "Toyota”. O “Toyota” é um pobre ratoneiro meu amigo, que foi preso aos dezasseis anos e um minuto por roubar bicicletas e garrafas de "Whiskhy"... Trouxe uma recomendação de seis anos para habitar a Penitenciária... Quando veio de cana, nem sequer o "Diário de Lisboa" lhe dedicou três linhas... Gandulo desimportante, o "Toyota" é, já agora, um daqueles perigosos cadastrados de que falam os jornais quando gravemente peroram sobre o surto da criminalidade. De vez em quando, sopra-me no óculo da cela e crava-me um cigarrinho. Dou-lho porque sou otário - e porque, na verdade, o "Toyota" não me é antipático, cabelo rapado à escovinha, uma funda cicatriz no sobrolho, a testa mesmo por cima do nariz, a beiçola grossa, o casaco de serrubeco, os passos miúdos, rápidos e arrastados - um assustador ar de criança que me escalafria os ossos. Alto moinante, o "Toyota" desde os dois anos que se tresnoita de casa - porque não tem casa. Saltava os quintais, dormia em caixotes - e, por virtudes de não sei qual esquadra da policia, desde pequeno que passava as noites de Natal encanado, sopa quente, um bocado de pão, tarimba para dormir sem frio, uma manta, presentes do Menino Jesus caridosamente fabricados pela PSP, gondolinas e calcantes novos, a barriga cheia - e a manhã seguinte outra vez por esse mundo, sem problemas familiares. Não fez o propedêutico, porque lhe frustraram a carreira deixando-o sem quaisquer letras. Não sabe o que é um OVNI. Desgraçadamente para a sua cultura geral, e tal como eu, nunca ouviu falar no Joe Jackson e na “new--wave”. Ratoneiro pobre, passeia-se por essas alas sempre metido em caldinhos, um lagarto enorme arrimado ao braço, os olhos vivíssimos sorrindo malandrices. De tempos a tempos, lá abicha uma goela. O seu quotidiano, todavia, é igual ao de todos: a cadeia cinzenta e triste, a alacridade viscosa da violência contida, as brutalíssimas brincadeiras, usuais nos colégios internos, nas casernas e nas prisões, este amigo dele que lhe não pode valer - o contrário do menino Rui. Os leitores conhecem o menino Rui. O menino Rui com dezasseis anos palmou um “Boeing 727” dos Transportes Aéreos Portugueses. Depois de conversado muito bem conversadinho pelo sr. Conde de Aurora - devolveu-o. Tem o ar lavado e inteligente dos chavalos modernos. Sabe rigorosamente o que é um OVNI, objecto voador não identificado. É calmo e estimado por familiares e amigos. Arrancou “manchettes” de primeira página em quase todos os jornais do mundo. Mora no Feijó. Só se tresnoitou uma vez para martelar o “Boeing” com uma Walter Ventura 6,35 na mão, passada à fieira electrónica da segurança do aeroporto, que se ficou a berrar. Já falou na rádio. Gosta muito de engenhocas e tecnologia. Joga os “flippers” no Apollo 70, à Rua António Serpa, mesmo ao lado do PC. Tem uma miúda no Terminal. Frequentou o propedêutico. Como é bom ser pequenino, ter pai, ter mãe, ter avós. Nada lhe falta. É criado com todo o carinho. É um filho exemplar... O contrário do “Toyota” e muito diferente do sr. Palma Inácio, herói nacional, valoroso combatente antifascista, banqueiro privativo do sr. Mário Soares. Os leitores conhecem o sr. Palma Inácio. O sr. Palma Inácio foi o primeiro homem que palmou um avião da TAP. Para maior glória da liberdade e da democracia, o sr. Palma Inácio também ajudou a martelar um transatlântico. Matou um homem. Depois assaltou um banco. Depois (depois da gloriosa revolução dos cravos) esteve ao serviço da heróico comandante Xavier, interrogando presos no Forte de Caxias, de madrugada, às ordens do COPCON, com a ajuda do sr. Rodrigo de Carvalho, membro do Comité Central do Partido Comunista. Fuma cachimbo e enche-o de “Revelation". Veste-se no “Pestana e Brito”. Conduz automóveis caros. Triunfou na vida. Os grandes da nossa classe política revêem-se nele. A grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andersen Sousa Tavares apertou-lhe a mão orgulhosamente à saída da prisão, naquela crepuscular tarde portuguesa em que todos fomos libertados, os pretos e os brancos, os Toyotas e os Ruis, os meus filhos e os meus netos, a Igreja e o Exército, Portugal e o futuro... Que grande exemplo! O "Toyota" está por aqui e vibra nervosamente, ouvindo ao longe o escape dos “aceleras", partindo para os rallys... O menino Rui dorme a chorar na Rua Joaquim Bonifácio, aos cuidados da Judite. O sr. Palma Inácio ronrona com a consciência tranquila num luxuoso palacete da Rua Alexandre Herculano, palmado ao Jorge de Brito. O sr. Palma Inácio, mais voto, menos voto, há-de chegar a ministro: - Palma Inácio veio para roubar. O menino Rui, se tiver juízo, depois das declarações do Eng. Martins, ainda tem possibilidades de ser comandante da TAP: - o menino Rui veio para trepar. 0 "Toyota” se continuar assim, os passinhos miúdos, os olhos de rato, o blaser de surrubeco, acabará faxina numa cadeia, dado como inimputável: - o “Toyota” veio para ficar. Pobre “Toyota” e pobre Rui! Glorioso e exemplar Palma Inácio, honra de democracia e ídolo dos Toyotas e dos Ruis! Quem tinha razão era o Pe. António Vieira: - O roubar pouco é culpa; o roubar muito é grandeza... M.M.M.