terça-feira, maio 15, 2007

ACIMA DE TUDO NÃO ESTRAGAR

O Estado tem funções essenciais na sociedade. Para as cumprir deveria ter como regra suprema o velho princípio médico do juramento de Hipócrates: Primum non nocere, acima de tudo não prejudicar.Há 200 anos, insultar o rei dava severo castigo, mas o assassino de um escravo ficava impune. Era uma época bárbara sem respeito pelos direitos humanos. Hoje, uma mãe mata o filho aos dois meses de gestação com apoio do Estado (Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril), mas será exemplarmente castigada se fumar um cigarro num bar (proposta de lei n.º 119/x). Aliás, mais castigada que se fumasse droga. Temos de abandonar a ideia de que a lei melhorou.Não melhorou mas aumentou. A justiça antiga só actuava em crimes cometidos e danos causados. A lista de delitos e penas era discutível, mas limitada. Hoje a lei mete-se em tudo na nossa vida, não para corrigir injustiças, mas para ensinar como viver. As autoridades nacionais e europeias estatuem os mais pequenos detalhes da existência. Nada existe sem regulamentação. O Estado deixou de ser justo para ficar bisbilhoteiro.O futuro desprezará o tempo que deixou a vida e a liberdade nas mãos de miríades de burocratas, funcionários, inspectores, ministros, polícias e juízes. Técnicos que, pela sua acção, geram muitas vezes mais estragos e custos que qualquer benefício que julguem atingir. O défice mostra-o bem. Mas o défice é o menos.O pior é que, na ânsia regulamentar, a lei passou a castigar quem não faz mal nenhum. A polícia multa por conduzir sem cinto de segurança ou sem seguro, penaliza quem faltar à medicina no trabalho. A lei interessa-se por materiais de construção, formas de brinquedos, peso de mochilas escolares. No restaurante, onde não se fuma mas ainda se come, a lista de requisitos e regras abstrusas enche volumes pesadíssimos. Tudo com penas agravadas. O mundo diz-se mais evoluído, mas é mais espartilhado, quadriculado, entupido.Não admira que o tema recorrente nos jornais seja a incapacidade das autoridades, da Ota e TGV à corrupção e desleixo. Os funcionários são os primeiros a denunciar os disparates dos seus serviços. A fúria legista gera os crimes mais bizarros cometidos, não por malfeitores, mas pelas autoridades pretendendo melhorar a nossa vida.Esta afirmação parece severa, mas é evidente. Quando inspectores inutilizam toneladas de comida, que sabem em bom estado, porque o acondicionamento não era regular, cometem pecado que brada aos céus. Um exemplo recente mostra como até se minam as bases da nossa identidade nacional.A escola, antes de tudo, ensina a ler e escrever. Por isso os custos de mudar a gramática lectiva são esmagadores, com benefícios vagos. Os linguistas, como todos os cientistas, são inovadores, polémicos, puristas. É natural que as teorias abundem, evoluam, se entrechoquem. Mas quando o Ministério da Educação intervém, a interessante discussão de especialistas passa a gravíssimo atentado à língua e cultura.A Portaria n.º 1488/2004 de 24 de Dezembro revogou a anterior gramática (Nomenclatura Gramatical Portuguesa da Portaria n.º 22 664 de 28 de Abril de 1967), adoptando, "a título de experiência pedagógica, a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário". Agora, como a experiência correu mal, vai proceder-se, "até Janeiro de 2009, à revisão dos programas das disciplinas de Língua Portuguesa" e "ficam suspensos, até 2010, os processos de adopção de novos manuais das disciplinas de Língua Portuguesa dos 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade" (Portaria n.º 476/2007 de 18 de Abril).A antiga gramática está revogada e a nova vai ser revista. Quem aprendeu, afinal não sabe nada. Quem quer aprender, não sabe o quê. Ninguém se entende. E o assunto é "só" a língua materna. Se existisse uma conspiração deliberada para destruir as bases da nossa educação, progresso e unidade nacionais, o efeito não seria pior. O facto de isto ser causado, não por terroristas, mas pela arrogância e incompetência de funcionários, não é desculpa. Estão na prisão muitos por muito menos.

João César das Neves
Professor universitário

naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A língua portuguesa está a ser tratada da maneira mais vergonhosa e ultrajante que é possível, desde a golpada d'Abril. Foi tudo combinado para que assim seja. Quanto mais se degrada uma língua mais se degrada um Povo, mas a inversa também está correcta. O pior são as crianças, hoje jovens adultos, a quem ela foi ministrada mal e porcamente. O ensino do português, que se continua a degradar assustadoramente a cada ano que passa, tem vindo a ser feito, no mínimo, às três pancadas desde essa altura, com todas as atribulações de percurso conhecidas, mais as inúmeras pseudo-reformas do sistema educativo (a TLEBS então é um autêntico miminho, um primor, uma obra-prima) cada uma pior do que a anterior e com implicações sérias no desenvolvimento cognitivo dos alunos. Quem esteve (e vai estando) por detrás de todas as reformas do ensino, devia esconder a cabeça debaixo da areia para sempre. Todos têm graves culpas, estando os políticos na linha da frente mas também toda a sua entourage, desde há 3 décadas - aqui incluídos todos os responsáveis desta área e todos os professores que estiveram e ainda estão ligados ao ministério, às reformas citadas e ao ensino em geral. Se atentarmos no palavreado dos que discursam nas televisões - políticos e não políticos, mas também professores, jornalistas, comentaristas (alguns destes ainda por cima professores...) e demais personalidades que lá acorrem em corrupio dia sim, dia sim - e de como são incapazes de conjugar correctamente os verbos (há excepções honrosíssimas) das frases que articulam ou sequer de construir um discurso mais ou menos estruturado e mìnimamente plausível (como igualmente não são capazes de o fazer correctamente nos artigos que escrevem para jornais e revistas nos quais colaboram), outra coisa não seria de esperar. Já uma vez disse e repito, o merceeiro dos meus pais que se tanto, coitado, talvez tivesse sómente a antiga 3ª classe ou nem isso, dizia menos erros gramaticais numa hora d'atendimento do que a maioria da politicagem que nos rege em dez minutos de discursata. Afinal eles aproveitaram-se da revolução para tudo destruír incluíndo o nosso bem mais precioso que, a par do nosso sagrado solo, é a nossa querida língua. E a pouco e pouco, após a destruíção de tudo o que nos fez sermos o Povo Glorioso que um dia fomos e nos honrou como Nação, atacaram o nosso último baluarte, a nossa língua, o único que lhes falta vencer para completar o círculo maldito. Enfraquecido que está há muito o corpo da Nação, sem forças para lutar e já sem alma, como qualquer ser indefeso e enfraquecido, entregou-se ao inimigo. É assim, tal e qual, que se destrói um Povo, uma Nação e uma Língua. E se não houver por aí portugueses corajosos, heróis, patriotas, portugueses destemidos leais à sua Pátria, à sua língua e ao seu Povo, que ponham cobro a esta verdadeira tragédia que se abateu sobre todos nós e coloquem um travão definitivo nesta criminosa corrosão diária - na qual os políticos participam alegremente e até a incentivam - e que já se prolonga há tempo demais, um dia destes quando formos à procura da nossa língua-mãe, tal como nos foi carinhosamente transmitida de geração em geração pelos nosssos antepassados, já não a encontraremos porque se foi de tal modo abastardando e diluindo no tempo que simplesmente terá desaparecido. Quem é que se pode resignar com isto?!

Nota: Quando se ouve um P.G.R. - alguém com uma formação forçosamente muito acima da média, alguém que detém um dos mais altos cargos institucionais do País, consequentemente uma individualidade que terá de ser superiormente instruída (pressupõe-se) e igualmente culta, incapaz portanto de nos seus discursos orais cometer erros linguísticos ou gramaticais (presume-se) - proferir a seguinte frase altissonante e gramaticalmente arrepiante por onde quer que se lhe pegue, para todos os microfones que a quiseram captar: "Os Blogues é uma vergonha" (!!!!) e quando, para cúmulo, não é por si imediatamente corrigida, está explicado o destino que os detentores do poder e outros altos responsáveis reservam à (por demais espezinhada) língua portuguesa, precisamente aqueles que em virtude dos lugares que ocupam deveríam dar o exemplo máximo de bem falar e bem escrever a língua portuguesa. A nossa lindíssima língua é falada e acarinhada por centenas de milhões de pessoas no mundo e se não lhe acudirmos com carácter de extrêma urgência um fim triste estar-lhe-á inexoràvelmente reservado e num futuro não muito longínquo. E se perdermos a nossa língua de que tanto nos devemos orgulhar e sendo neste momento de facto o nosso último bem colectivo - que devemos peservar a todo o custo - o que nos restará como Povo? O solo pátrio? Nem isso. Ao que parece, grande parte dele já não nos pertence.
E que destino deveria ficar reservado aos criminosos que ao longo de 33 anos a têm vindo lentamente a assassinar?

Maria

5:12 da tarde  

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