Os sinais do nosso tempo
Numa altura em que milhares de fabriquetas de opinião atacam as fábricas de opinião, exprimindo as opiniões, este artigo de MMM publicado no jornal «Politica em 1971 e pinado do o sexo dos anjos: 12/05/2004 - 12/11/2004 continua actual:
«Isto aconteceu em 1967, eu vi, eu estava lá:Ululantes, o punho cerrado, bandeiras negras ao alto, milhares de estudantes da Universidade Livre escutam, em Berlim, Rudy Dutschke, revoltosos cabelos ruivos, gestos alucinados, uma louca convicção na voz e, na boca, de dois em dois minutos, o nome de Herbert Marcuse. O discurso é breve: — mal o agitador se cala, do meio da multidão eleva-se um boneco de pano, vestido de cinzento com gravata de seda; ao peito, pendurado, um nome: Axel Springer. Com um urro, os jovens lançam-se sobre o espantalho e deitam-lhe o fogo; depois, espalham-se pela cidade, voltam automóveis, apedrejam montras e incendeiam maços de jornais, do «Die Welt» e do «Bild Am Sonntag». Vindo de longe, entrava na nova fase o já longo processo da maior revolução socio-política do nosso tempo: — a revolução cultural do Ocidente; a que, finalmente, vem ameaçar a tenebrosa criação da sociedade democrática em que vivemos: — A Indústria da Opinião.Rudy Dutschke, é apenas um agitador. Tendo fugido de Berlim Leste, dois dias antes de se começar a erguer o muro, vinha todo ele embebido em marcusianismo. Se lhe chegassem um fósforo, explodia. O marxismo freudiano (ou o freudianismo marxista) do sociólogo-filósofo que abala as estruturas de todas as sociedades saídas da Revolução Francesa, incluindo a ditadura do proletariado, excitara-o até à loucura. Ao filho chamou Che-Mao. De excitação em excitação veio para a rua pregar a revolta total. Daí a queimar em efígie o sr. Axel Springer e quase incendiar a Europa foi o salto duma cobra.O não querer coisa nenhuma — e agir — é querer a destruição de tudo; pelo menos de tudo o que se vê, sente e nos condiciona a vida. Os estudantes em França revoltaram-se sem uma razão palpável — pelo contágio alemão, dizem uns; pelo prazer onírico da revolta, dizem outros; por nada, afirma a maioria. Vêm para a rua, hasteiam bandeiras vermelhas, ocupam lugares recheados de simbolismo civil — e contaminam o país; — em meia dúzia de dias, alastrando como o fogo numa mecha, a França foi pasto da revolução, ia desbancando no caos, pareceu à beira da catástrofe.Ante isto observadores mais animosos confessam-se assombrados — e tremem, húmidos de medo, vendo esboroar-se o edifício da sua confortável liberdade burguesa; os partidos que ainda não sararam as chagas abertas do presidencialismo paternalista do General De Gaulle, confessam-se ultrapassados pelo movimento das massas — e, até os comunistas olham aterrorizados para a esquerda onde a multidão vocifera e pragueja, acusando-os de burgueses, de contra-revolucionários, de oportunismo arrivista, de instalação. Qualquer coisa de profundo e profundamente terrível abala o mundo democrático que nos rodeia: o irreversível processo de decomposição da democracia recomeça a sua marcha inexorável para o abismo anarquista. Falhada a experiência demo-capitalista, falhada a tentativa demo-comunista, falhados os movimentos de massas, a sociedade tende a regressar ao caos original, ao salve-se quem puder, ao génese social. Vamos beber o cálice até às fezes. Durante dez anos. Durante vinte anos. Por duas, por três, por quatro gerações. Vamos deixar aos nossos filhos um mundo muito pior do que o nosso. De profundis clamavit requiem aeternum.O mal-estar generalizado agora, começou a sentir-se por volta de 50 um pouco por toda a parte. Com o objectivo de estruturarem quadros para o futuro, os comunistas fomentaram, aqui e além, uma e outra desordem; meia dúzia de estudantes eram presos, e perdiam o ano, atrasavam os cursos e ficavam politicamente marcados para o futuro, futuros militantes, futuros funcionários do partido a viverem na ilegalidade. A massa estudantil porém, depressa compreendeu o logro — e foi preciso explodir a revolução cultural chinesa, ler-se Marcuse, e morrer o Che Guevara, para que, novamente, a agitação começasse a fermentar, propondo um comunismo da esquerda, a doença infantil de que falava o camarada Lenine.A atracção chinesa, porém, é o caos organizado. Não se adapta aos nossos tradicionais conceitos de anarquia e da catástrofe. Exige demais do colectivismo das massas; e uma revolução rural que mal se enquadra no esquema urbanístico que, sociologicamente, domina a sociedade industrial do Ocidente, dos Urais à Baía de S. Francisco. Em breve, também, é ultrapassada. O estudante ocidental anseia por se degradar mais, por descer mais ao fundo do abismo; quer um caos caótico, sem livrinho vermelho e marchas de milhões, ginasticadas e com o passo certo.Em Madrid, ainda dominados pelo burguesismo comunista, os universitários apedrejaram a polícia; em Tóquio, por ocasião da visita de um porta-aviões atómico, a rapaziada utiliza pela primeira vez uma táctica certa de guerrilha urbana, e quase leva de vencida o poderoso dispositivo policial que lhes faz frente; a questão racial põe em ebulição algumas universidades americanas; em Estocolmo os universitários fazem perigar o paraíso sueco — e em Varsóvia, como em Praga, o paraíso socialista abre largas fendas com os encontrões que os estudantes lhe dão. No México 40 mortos num dia assinalam para a eternidade o filantropismo desportivo e romântico do Jogos Olímpicos. Uma manhã, em Berlim, cidade de um outro mundo, na chamada Universidade Livre os seus frequentadores comandados por Rudy, o Vermelho, queimam em efígie o Sr. Axel Springer. Estamos no limiar da hecatombe. Springer é o grande símbolo da nossa pobre sociedade democrática. Springer é o sinal. Ao deitarem-lhe fogo os estudantes incendeiam uma das mais sagradas instituições democráticas: o self-made-man, o anti-aristocrata, o herói capitalista. E fazem-no em nome da democracia, da liberdade da Imprensa, contra a Indústria da Opinião, cúmulo da democratização cultural das massas.Axel Springer porém simboliza o sistema social que se fundamenta na liberdade de Informação. Porque europeu e ideológico, Springer tem um significado mais vasto e mais profundo que o que teve William S. Hearst (o «Citizen Kane» do Orson Welles) — embora Hearst, como tipo, seja na verdade bastante mais exemplar. É como o americano um extraordinário vendedor de jornais: exactamente como Hearst também ele parece sequioso de poder. Todavia, todo o seu caminho atapeta-se de ideias, quando o lucro, o lucro puro, parecia ser, apenas, o motor que movia o americano. Por isso os estudantes alemães não se lembraram de deitar fogo à filial berlinense da «United Press», uma das grandes empresas do grupo Hearst, e foram deixar bombas de cloreto de potássio no sumptuoso edifício de cobre e vidro, sede em Berlim do grupo Springer.Quando começou tudo isto? Em 40 quando as leis tácticas da guerra foram revolvidas ao caírem sobre a França os primeiros pára-quedistas alemães? Quando ruiu a catedral de Coventry? Na destruição sistemática, casa por casa, de Dresden, a mais bela cidade barroca da Europa, sepultando nos seus escombros, ou incinerando-as nos incêndios, cento e cinquenta mil pessoas? Em Katyn? Nos genocídios «políticos»? Em Hiroshima? Aquando do bombardeamento americano de Roma, a Cidade Eterna? Ao sossobrar Monte Cassino, casa mãe da civilização?Embora já comecemos a ver desempenhada a perspectiva histórica do nosso tempo — ainda não se divisa com nitidez o ponto que marca o início da sua revolução. Os sinais revolucionários, no entanto, vêem-se claramente como os sinais da imagem distante num visor electrónico.A desintegração do átomo é sinal — sinal de terror. O homem apavorado, de tão senhor do seu destino, sente-se pequeno e frágil com o esmagador poder que a ciência lhe outorgou. A guerra sem limites impõe limites à própria guerra. A guerra atómica? Não há. Ninguém se atreveria a deflagrá-la. As ogivas nucleares apontadas ao coração da Rússia como as que estão apontadas ao coração da América não servem para nada. Ninguém as usará. O medo das retaliações, o medo da morte (não o medo de matar) evita a maior das hecatombes. O medo, faz parte, agora da nossa sociedade. É um facto social, é um factor social. Une os homens. Pacifica-os. É construtivo. Jamais como agora, tanta gente se juntou amedrontada para construir pacificamente um mundo novo.O Concílio Vaticano II é sinal, também — sinal de contradição, como desde há dois mil anos o é o Divino Mestre. Dois concílios cresceram à sombra da nave de S. Pedro. O dos padres — e o dos jornalistas. O dos padres ainda está em digestão. Levará séculos a fundir-se na sua inevitável e miraculosa codificação homogeneadora. O dos jornalistas domina o mundo: — há mais textos conciliares publicados na grande imprensa internacional que palavras ditas no Concílio. Por isso, a desordem reformista assalta a Santa Madre Igreja. O vetusto prédio parece estremecer, e os ratos da sacristia abandonam a branca nave como que a augurarem tempestades muito maiores. O próprio nome de Deus é posto em causa. Em vão já ninguém o invoca. Não vale a pena: — em Jerusalém instala-se um estado teocrático governado por ateus, os judeus helenizantes da diáspora que, falsamente, se judaízam para arremeterem contra a ortodoxia milenária dos avatares.Não há Deus: o concílio dos jornalistas acabou com ele — com O que desde o princípio do tempo mais guerras provocou, mais vezes se invocou para semear a Morte. O Deus dos Exércitos, maçoniza-se e passa a ser o Deus do Universo. Com régua e esquadro. Descoberto no fundo de um coruscante tubo de ensaio — ao fim duma equação do terceiro grau. A Igreja Romana, símbolo da Autoridade, a própria Autoridade, discute-se como qualquer governo; é posta em causa a sua acção apostólica; é ela própria posta em causa. Deus não criou o mundo. Ao primeiro dia uma formidável explosão atómica criou a Terra. Ao segundo dia, por via doutra desintegração molecular, fez-se luz — e de desintegração em desintegração, por reacções em cadeia que jamais terminarão e definem o novo conceito da Eternidade, o Mundo cresce, e faz-se a vida, e ocorre a Morte-Nirvana, Morte científica, cinzas, pó e nada. Deus é apenas o núcleo. A técnica há-de encontrá-lo quando encontrar a super-lente que o pode ver. A Fé, nesse dia, terá um nome de código — e para os menos crédulos será receitada no consultório de um oftalmologista. É um óculo.Chegámos à Lua. O conceito anos-luz deixou de ter substância. Podemos ter a Lua em nossas casas em poucos minutos graças ao receptor de televisão. E podemos ter os Jogos Olímpicos de Tóquio no dia anterior à sua realização. A convenção astronómica dos fusos horários dissolve-se intelectualmente como a nata se dissolve em cima dos morangos. Fusos horários? Ninguém já sabe o que é. O mundo volta primitivamente a regular-se pelo Sol. Mas chegámos à Lua. As velocidades incríveis: — o foguetão sai da atmosfera a uma velocidade X, ao entrar na estratosfera mantém essa velocidade por novo impulso que lhe é dado pela sua transformação noutro foguetão, ao chegar à ionosfera, a velocidade que leva passa a ser qualidade da sua essência, nunca mais parará, deixará de ser se deixar de ter aquela velocidade. Monotonamente, girará nos espaços siderais, até o material dar de si, desgastando-se contra a poalha cósmica com a qual se cruza. Da Terra pode ser comandado e conduzido para um objectivo Y — e ir para Marte, para Vénus, para Saturno, e do alto descortinar o Universo, o Infinito, o Imponderável. A ficção científica deixou de o ser. Júlio Verne já nem sequer é um patusco divertido. A sua imaginação do princípio do Século foi ultrapassada pela realidade desta nossa desgraçada segunda metade. O que nós hoje podemos conceber não é nada comparável com o que vai acontecer. A Fé em Deus é substituída pela Fé na Ciência e na Técnica. Exige-se ao Papa que se inspire em Malthus e meta o Espírito Santo no pombal; em vez dos Evangelhos recita-se Keynes.Tudo isto é assim porque se sabe. E porque se publica, e grava e transmite. Mesmo que não seja assim, passa a sê-lo. Publica-se, logo existe. Se se não publicasse, não existia. Politicamente — dizia Salazar em 1935, no discurso de inauguração do S.P.N. — só existe o que o público sabe que existe. Não tendo conhecimento dos factos, o público não sabe que eles existem e, portanto, não pode formar a sua opinião. Tem, por isso, que se saber tudo. Desde o que é íntimo e, antigamente, só se sabia entre lençóis, até aos mais secretos movimentos dos exércitos da União Soviética. Só assim se governa: — todos os regimes, embora não o pareçam, são hoje, em maior ou menor grau, regimes de opinião(1).A opinião, todavia, não se furta à imutável lei: — só é, só existe, se for conhecida. Sem que o público a conheça, não tem valor. Só a Opinião Pública é, em si própria, um facto sócio-político. Só essa vale a pena recolher, medir e meditar. Os governos, ao menos por motivos de pura propaganda, têm de dar a conhecer a sua obra, para poderem justificar doutrinas, métodos de acção, a própria existência — a sua opinião que tem de ser pública para poder ser respeitável, é, em princípio, a opinião que mais interessa, pois serve, essencialmente, para que o público forme opinião. É do carácter da Opinião a existência duma ou de várias opiniões diferentes. A discussão não se junta à opinião por acaso; está-lhe ligada por essência. Só se afirma uma opinião contra uma opinião adversa(2).Daqui, a indispensabilidade do diálogo logo, dos governos terem interlocutores — só podem ter opinião contra a opinião dos outros. Daqui, a necessidade de fomentar a crítica, impregnada de informações concretas e objectivas em que se fundamentam, em maior grau, todos os regimes.A fome desregula os ciclos menstruais? Se desregula, a União Indiana pode estar perdida, se não utilizar os processos da esterilização. Quem é o novo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas? Quantos anos tem? Com que é casado? O problema é a informação. O objectivo é a opinião. São precisas fábricas de informação para se possa formar a opinião, porque só informado se pode opinar. As fábricas de informação produzem opinião.É contra isto, contra uma das mais perfeitas fábricas produtoras da opinião dos nosso tempo que se ergueram os estudantes em Berlim, caudilhados por Rudy, o Vermelho. Axel Springer é o monstro de mil cabeças que Voltaire, sem o querer, profetizava ao afirmar: a opinião governa o mundo. É contra o governo do mundo que se ergueram autos de fé nas praças da antiga capital do Reich, se estilhaçaram vidraças e correu o sangue em ribeirões a futurar desgraças maiores.As fábricas produzem opinião: — uma opinião. Não exprimem as opiniões. E os estudantes recusam-se a aceitar a realidade dos factos: — têm a sua opinião.A questão é velha de séculos.Manuel Maria MúriasNotas:(1) – Salazar, Prefácio ao III volume dos Discursos.(2) – Gaston Berger, in «L`opinion Publique» (Leçon d`Ouverture): — «L`opinion Publique», Phénomène Humain, pág. 15, Paris, 1957. (In Política, n.º 45, 15.12.1971, págs. 6/7.)
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