quarta-feira, janeiro 09, 2008

A herança da revolução francesa

Na minha opinião, há um facto assente: não existe neutralidade. Permanecer silencioso significa tão-somente conferir um poder extra àqueles que falam (e, no campo das relações internacionais, permanecer «neutro» perante um problema ou um dado processo, é apenas guardar a própria «força» para outra ocasião). O simples facto de pertencer a uma escola de pensamento, de seguir uma doutrina filosófica ou religiosa, de votar num partido polí­tico, implica um «ajuizar» que atinge, sucessivamente, todos os campos de aprendizagem e actividade.Foi dito - (e não deixa de ser provável que seja algo mais que um gracejo) - que o homem de direita tinha uma gastronomia diferente da do homem de esquerda! Nenhum campo escapa à «ideologia», a qual definirei aqui como o modo de ver o mundo que nós herdamos, que nós sentimos instintivamente, ou que deliberadamente escolhemos como nosso. O mundo é neutro fora dos homens, pois fora do homem não existe pensamento auto-consciente. Nas sociedades humanas, pelo contrário, nada é neutro. Os seres humanos, poderíamos dizer, são animais que dão significado ao que os rodeia, colocando esse meio numa perspectiva histórica específica. Há maneiras diferentes de ver o mundo e de pertencer a ele, e estas incluem o conhe­cimento puro, tanto como o conhecimento intuitivo, as emoções, os valores implícitos, os juízos estéticos, etc.Além disso temos que considerar que a sociedade é uma estrutura, na qual, tudo está ligado. A nossa percepção intelectual leva-nos, por meio da capacidade de análise. a separar os diferentes constituintes desta estrutura para tentar compreender melhor a sua ordem e para alcançar a sua transformação.Mas, entretanto, este conhecimento dá-nos a ilusão de que as coisas são realmente distintas umas das outras, embora elas apenas estejam assim na nossa mente (nota­mos, a propósito, que é esta profunda diferença existente entre o mundo das ideias e o mundo dos factos - sendo a primeira apenas uma imagem sempre imperfeita da segunda - o que explica o carácter heteróclito da acção política, isto é, o facto de que as consequências reais das acções empreendidas diferem sempre, de um ou de outro modo, do efeito pretendido inicialmente). Real­mente (como o disse um pouco acima) tudo está ligado. Numa estrutura social, o sentido de cada membro depende não só da sua natureza intrínseca mas também - e espe­cialmente - da sua função relativamente aos outros mem­bros. Nações, povos, indivíduos têm um sentido enquanto estão em posição, em comparação com ambos os partidos e - tal como para um jogo de xadrez - ninguém pode actuar sobre nenhum deles, isto é, modificar as barreiras que existem entre este e aquele membro, sem modificar, ao mesmo tempo, uma ordem mais geral.Claro que podemos lamentar este estado de coisas, assim como podemos lamentar a influência crescente das ideologias. No entanto, parece-me difícil, se não impossível, modificá-lo. Queiramo-lo ou não, estamos condicionados pelo nosso meio assim como também o estamos pelo que existiu antes de nós.O homem nasce primeiro como um herdeiro. Ele não nasce em série, ele nasce dentro de um povo, dentro de uma cultura, dentro de uma dada era, e é desta particular posição em que está que ele será levado a emitir juízos de valor e juízos de facto; (é tão necessário aspirar à objecti­vidade, como quanto teremos que nos resignar que sempre será impossível alcançar uma objectividade total. É impos­sível considerar «objectivamente» todos os aspectos de um problema, assim como o é olhar a terra de dois pólos ao mesmo tempo).Nesta relação, as leis que governam as sociedades humanas não diferem muito das leis da microfísica: a posi­ção do observador determina em parte o esboço da «pai­sagem» estudada.O que é certo, por outro lado, é que as ideologias, isto é, os modos de ver e conceber o mundo, ainda quando não se associam como tal não foram sempre conscientes de si próprias como o são hoje, numa era em que já foram grandemente acumuladas e formalizadas numa multidão de sistemas. Esta «súbita preocupação ideológica« é, obviamente, uma consequência directa ou indirecta da revo­lução de 1789. De facto, logo que o princípio de autori­dade que naturalmente governava as sociedades da pré­-revolução foi posto em dúvida na sua legitimidade e nos seus fundamentos, tudo o que antes «was going without saying~» tudo o que era espontaneamente considerado como posição integrante de uma «ordem natural», apareceu como convenção, isto é, como uma criação humana subjec­tiva, e, em consequência, deparou-se com uma grande quantidade de facções politico-ideológicas, pretendendo todas, sucessivamente, possuir uma «nova verdade» e pro­curando os meios de assegurar o poder para si próprias. Paralelamente, desde que o Estado se colocou na posição de ser questionado pelas diversas facções, as quais estão aptas a uma tomada do poder de um dia para o outro (como é hoje sabido) vimos, enquanto todo um edifício de contra­-poderes era levantado frente ao poder estabelecido, simul­taneamente surgir toda uma multiplicação e expansão de pólos de pressão ideológica.

Manuel Azinhal